segunda-feira, 4 de abril de 2011

O HOMEM DIANTE DA MORTE


Conheci bem José Alencar, e conheci bem Teotônio Vilela. Minhas relações com o alagoano eram marcadas pelo patriotismo radical que ele passou a exercer na luta contra a ditadura, já diagnosticado o câncer que o levaria. Com Alencar, a nossa cumplicidade era a província de Minas. Foi em nome de Minas que pude contribuir para sua eleição ao Senado. Em 1998, asfixiadas as montanhas pela arbitrariedade manhosa do governo federal de então, a vitória de Itamar era vital para a recuperação da autonomia do Estado. Sabíamos, desde o início, que a eleição iria para o segundo turno. Como as eleições para o Senado se resolveriam no primeiro, José Aparecido de Oliveira e eu, sem discutir o assunto com os candidatos, concluímos ser absolutamente necessária a vitória de Alencar. Se perdêssemos a cadeira do Senado para os adversários, a posição do governador Eduardo Azeredo, que disputava a reeleição, estaria fortalecida - e comprometida a restauração política de Minas. Foi assim que Aparecido e eu nos escalamos, para trabalhar pela vitória de Alencar. Dediquei-me a ajudá-lo, na organização de seu discurso de campanha.

Teotônio sabia da gravidade da própria enfermidade e tinha a consciência da morte. Eu trabalhava na Folha de S. Paulo, e Octavio Frias Filho sugeriu-me que o entrevistasse, em 1982. Foi a entrevista mais demorada que fiz em minha vida. Teotônio falou-me, pela primeira vez, na casa de uma de suas filhas, em São Paulo. Quando, no dia seguinte, preparava para redigir o texto, recebi seu telefonema. Queria acrescentar alguma coisa esquecida. E assim ocorreu por quase duas semanas. Ele sempre interrompia o meu trabalho, lembrando-se de uma idéia, de um detalhe. E fazia questão de ir à minha casa, tornando-se, naqueles dias, íntimo da família. As nossas conversas ocupariam um livro de razoável tamanho. Tive, no texto final, que cortar trechos também importantes, para me cingir a duas páginas do jornal. Daí em diante, sempre que ele ia a São Paulo, nós nos encontrávamos, no Hotel Otton Pálace, onde se hospedava, ou em minha casa.

Nos dois homens públicos encontrei o mesmo confronto com a idéia da morte. Teotônio não a temia, embora amasse profundamente a vida. Ele fez da pressa (sabia que o tempo se encurtava) seu ânimo, e saiu pelo Brasil, clamando pela pátria que existia, mas era desdenhada pelas elites, às quais, pelo nascimento, pela carreira e pela fortuna, ele pertencia. Em nossa última conversa, pelo telefone, ele me disse: “o óleo da candeia já está acabando, só resta o molhado da mecha. Estamos indo, Mauro”. Em Teotônio, a busca do poder era responsabilidade legada pelos ancestrais. Vinha com a escritura da fazenda e as máquinas da usina, além, é claro, dos restos dos engenhos mais antigos. De uma família que, consciente de seu papel, endereçara Teotônio à política, e seu irmão, Dom Avelar, que foi Cardeal Primaz do Brasil, ao sacerdócio. José Alencar, nascido na Zona da Mata de Minas, enfrentou o trabalho muito cedo. Autodidata, chegou à vida pública depois de vitoriosa carreira empresarial. Faltava-lhe a realização política e a ela se dedicou já homem maduro. Aproveitou, com inteligência, a ajuda das circunstâncias, ao aceitar o convite de Lula, e dar ao eleitorado da classe média (mais do que aos eleitores das elites, conhecedores das coisas como elas são) o aval para a vitória do operário.

Mas, em ambos, na obstinação pelo aproveitamento das horas que se esvaíam, houve a mesma postura diante da morte: a de recebê-la, como dizia Manuel Bandeira, em seu poema conhecido, “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar”.

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