segunda-feira, 18 de abril de 2011

DE OLHOS OPACOS NO TURBILHÃO DO MUNDO

O engenheiro baiano José Carlos Aleluia enviou carta ao Reitor da Universidade de Coimbra, protestando contra a concessão do título de Doutor Honoris-Causa ao operário Luis Inácio da Silva, que, com o apelido afetivo de Lula, presidiu ao Brasil durante oito anos. Sem mandato, Aleluia mantém contatos com seus eleitores, mediante um site na Internet.

Ele foi um oposicionista inquieto, ocupando, sempre que podia, a tribuna, no ataque ao governo passado, dentro da linha sem rumo e sem prumo do DEM. Aleluia considera uma ofensa às instituições acadêmicas o título concedido a Lula, e faz referência elogiosa à mesma homenagem prestada ao professor Miguel Reale. Esqueceu-se, é certo, de outros brasileiros honrados pela vetusta universidade, como Tancredo Neves. Não é preciso conhecer a teoria de Freud para compreender a escolha da memória de Aleluia.

O título universitário é, hoje, licença profissional corporativa. O senhor Aleluia está diplomado para exercer o ofício de engenheiro. A Universidade o preparou para entender das ciências físicas, e é provável que ele seja profissional competente, tanto é assim que ministra aulas. O título universitário certifica que o graduado estudou tal ou qual matéria, mas não faz dele um sábio. O conhecimento adquirido na universidade é importante, mas não é tudo. Volto a citar, porque a idéia deve ser repetida, os versos de um escritor mais identificado com a direita do que com a esquerda, T.S. Elliot, nos quais ele mostra a diferença entre ser informado, conhecer e saber: Where is the wisdom we have lost in knowledge? Where is the knowledge we have lost in information?

O título de Doutor Honoris-Causa, sabe bem disso o engenheiro Aleluia, não é licença profissional, mas o reconhecimento de um saber, construído ao longo do tempo, tenha o agraciado ou não freqüentado a universidade. O papel da Universidade não deveria ser o que vem desempenhando – o de conferir certificados de preparação técnica -, mas o de abrir caminho à busca do saber. O Senador Christovam Buarque, com a autoridade de quem foi reitor da UNB, disse certa vez que a Universidade ideal será aquela que não expeça diplomas.

Lula, com os seus defeitos, e não são poucos, é um doutor em política. Um chefe de Estado não administra cifras, não faz cálculos estruturais, não prolata sentenças, nem deve escrever seus próprios discursos. Cabe-lhe liderar os povos e conduzir os estados, e isso dele exige muito mais do que qualquer formação escolar: exige a sabedoria que desconfia do conhecimento, e o conhecimento que se esquiva das informações não confiáveis.

A universidade é uma instituição relativamente nova na História. Ela não foi necessária para que os homens, com Demócrito, intuíssem a física atômica; com Pitágoras e Euclides, riscassem no solo figuras geométricas e delas abstraíssem os teoremas matemáticos; e muito menos para que Fídias fosse o genial arquiteto e engenheiro das obras da Acrópole e o escultor que foi. Mais ainda: as maiores revoluções intelectuais e sociais do mundo não dependeram das universidades, embora nelas se tenham formado grandes pensadores – e sua importância, como centro de reflexões e pesquisas, seja insubstituível. O preconceito de classe contra Lula sela os olhos de Aleluia e os torna opacos.

Solidário o meu autodidatismo com o de Lula, quero lembrar o grande escritor norte-americano Ralph Waldo Emerson: um talento pode formar-se na obscuridade, mas um caráter só se forma no turbilhão do mundo.

É no turbilhão do mundo que se forma o caráter dos grandes homens.

O DESPREZO PELOS POBRES

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um dos brasileiros mais bem sucedidos de sua geração. A natureza e o lar concederam-lhe inteligência que boas escolas e um grande mestre da sociologia, Florestan Fernandes, aprimoraram. Filho de honrado chefe militar, que a memória nacional respeita, Fernando viveu uma juventude favorecida. Mas parece não ter aprendido muito com o pai que, tendo acompanhado de perto a ascensão do nazismo, optara pelo lado esquerdo da estrada. Muito cedo, a sua elegância verbal conquistava os interlocutores. Jânio Quadros de tal maneira ficou fascinado pelo jovem sociólogo que incumbiu José Aparecido de convida-lo para o Conselho Nacional de Economia, então o mais importante órgão consultivo do governo. Anos depois, com sua língua afiada, Aparecido explicava por que Fernando Henrique declinara do convite: “era muito pouco para ele”.

É provável que, com sua astúcia, tenha pressentido a brevidade do histriônico arrivista, e, precavido, preservado o futuro. Em uma coisa, todos os que convivem mais de perto com o ex-presidente, concordam: sua postura, onde quer que esteja, é a de um chefe. Ele não conversa: expõe; não pergunta: adianta sua posição sobre o tema em pauta. É, sempre, o professor e o líder. É difícil imagina-lo apenas aluno. Não nasceu para aprender, mas, sim, para ensinar.

Lembro-me da confidência que me fez, certa vez, o grande Josafá Marinho: Fernando só aparecia no plenário do Senado por alguns minutos, para justificar a presença. Não tinha paciência para ouvir seus pares. Na realidade só ouvia um único orador, com atenção: ele mesmo. Não obstante, quando estava inscrito, mandava avisar a todos os senadores, para que o fossem ouvir.

A sorte o levara ao Senado, como suplente de Franco Montoro – que, ao eleger-se governador, deixou vaga a cadeira. A mesma sorte o ungiu, quando o presidente Itamar Franco, ao descuidar-se da velha cautela montanhesa, escolheu-o como sucessor. Na presidência, confirmou a sua personalidade. Várias vezes demonstrou desapego ao povo brasileiro. Transferiu para as massas o próprio sentimento, ao qualificar o brasileiro comum como fascinado pelo estrangeiro e, surpreendeu a intelligentsia nacional, ao citar Weber e estabelecer uma ética particular para os governantes. Fomos, para ele, um povo de capiaus, o que levou Jô Soares a apresentar-se em seu talk-show, no dia seguinte, de chapéu de palha. Mesmo aposentado compulsoriamente antes dos 40, classificou como vagabundos os aposentados por tempo de serviço.

Suas atividades não são as de um ex-presidente. Ele quer liderar a oposição. É assim que já emitiu várias encíclicas, como a última, em que aconselha a esquecer o povão e investir na classe média. Como se os setores conscientes da classe média, que influem, pudessem se esquecer do desemprego, das privatizações, e da humilhação diante do FMI. Os pobres, ele pontifica, já foram “comprados” pela política assistencialista do governo, e serão fiéis à sucessora de Lula, por isso não merecem atenção, nem cuidados.

Falta-lhe a capacidade de ver o Brasil como um todo, o que é comum a muitos políticos de São Paulo. O Brasil que eles conhecem não vai além da periferia da grande cidade, que, a contragosto, visitam em vésperas eleitorais.

Ninguém deve estranhar a posição do ex-presidente. Ele mantém a sua coerência. A oposição, de resto moderada, que fez ao regime militar, era a de um homem cheio de talentos, que o golpe enviara para o exílio. Para ele, as circunstâncias especiais que o conduziram à Chefia do Estado eram naturais: naquele momento, e em seu próprio juízo, Itamar não poderia encontrar outro. Ele era o príncipe. Não devia ao mineiro a indicação. Devia-a ao seu auto-avaliado saber, que ele quer usar hoje para, sem mandato, liderar a oposição. Resta saber se se curvarão diante de sua grandeza.

QUE SE OUÇA A VOZ DO POVO

Não se trata de uma simples lei ordinária, nem de mera reforma no processo eleitoral, mas de profundo golpe no sistema democrático que há quase 200 anos estamos construindo no Brasil. É triste que os principais patrocinadores dessa “lista preordenada”, como o leguleio Henrique Fontana, em jogo semântico, a denomina, sejam parlamentares do Partido dos Trabalhadores, que, a um tempo, foi a mais bela promessa de realização democrática de nosso povo.

Ainda que os partidos políticos brasileiros fossem organizações sérias, com diretórios em todas as circunscrições eleitorais funcionando regularmente e a participação de filiados (todos em dia com sua contribuição para seu funcionamento), e que esses filiados fossem ouvidos para a composição das listas eleitorais, em consultas prévias e honestas, o sistema seria viciado. A Constituição não exige do eleitor a sua filiação a qualquer partido político. Os partidos são instâncias intermediárias entre o voto e o poder, que facilitam o processo, mas não são absolutamente necessários à legitimidade do sistema. O que faz a legitimidade do poder é a expressão clara da vontade de cada um dos cidadãos em escolher quem o representará no poder legislativo, e quem o representará (no sistema presidencialista que adotamos) na chefia do poder executivo, no município, no estado e na união. Os partidos são a reunião, eventual (não há partidos eternos) de cidadãos em torno de idéias, quando as há, o que não é exatamente o nosso caso, e de interesses corporativos. Eles nasceram, no modelo moderno que conhecemos, dentro da Casa dos Comuns, na Inglaterra, ao longo do século 17, com a divisão entre whigs e tories; com os primeiros contestando o poder estabelecido e os segundos, o apoiando. Em suma, na linguagem de hoje, entre a esquerda e a direita, entre conservadores e progressistas.

Não se tratando de uma questão tão simples, como querem fazer os líderes dois grandes partidos que dividem hoje a maioria na Câmara, o poder – o PT e o PMDB – é preciso que os legítimos senhores do poder político, ou seja, os cidadãos, sejam ouvidos. Os eleitores não lhes conferiram mandato tão amplo, como pretendem. A imposição das listas eleitorais fechadas corresponde a nova regra constitucional, ainda que a votação uninominal não seja claramente estabelecida na Carta Maior. Desde que há eleições no Brasil, o voto tem sido uninominal. O que, felizmente tem mudado, é a qualificação dos eleitores. A República, ao eliminar o voto censitário, estabeleceu o sufrágio universal masculino. A Revolução de 30 trouxe o voto feminino. O voto uninominal é regra consuetudinária, que jamais foi posta em dúvida.

Os partidos, se fossem organizados, poderiam agora ouvir seus filiados – mas os filiados são minoria inexpressiva e, em nosso caso, cooptados e escolhidos pelos donos das legendas, mediante seus representantes nas bases municipais. Ainda assim, conviria que houvesse, mediante convenções regionais, a consulta a esses filiados, que deveriam ouvir seus eleitores. Eles preferem votar em listas fechadas ou diretamente nos candidatos?

No caso em que se aprovasse o sistema, haveria que decidir quem iria elaborar a lista. Se essa elaboração não partisse dos filiados, em número expressivo, dentro do círculo eleitoral próprio, seria uma violência intolerável ao processo democrático de escolha. O voto em lista fechada é admissível em certos países europeus, onde os partidos têm programas definidos, filiados pagantes e que se reúnem normalmente, e que escolhem previamente seus candidatos. Os que têm mais votos prévios assumem os primeiros lugares da lista. Nesse caso, é comum que os filiados escolham nomes de prestígio, de pouco apelo eleitoral, mas que podem dar substância moral e ideológica à bancada. Aqui no Brasil, a escolha será dos dirigentes partidários que sempre irão ouvir os seus financiadores. Enfim, irão fortalecer-se as já numerosas bancadas da Febraban, do agronegócio, das igrejas, dos sindicatos.

Se os eleitores não forem ouvidos, o povo se fará ouvir, nas ruas. Disso não tenham dúvidas.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O HOMEM DIANTE DA MORTE


Conheci bem José Alencar, e conheci bem Teotônio Vilela. Minhas relações com o alagoano eram marcadas pelo patriotismo radical que ele passou a exercer na luta contra a ditadura, já diagnosticado o câncer que o levaria. Com Alencar, a nossa cumplicidade era a província de Minas. Foi em nome de Minas que pude contribuir para sua eleição ao Senado. Em 1998, asfixiadas as montanhas pela arbitrariedade manhosa do governo federal de então, a vitória de Itamar era vital para a recuperação da autonomia do Estado. Sabíamos, desde o início, que a eleição iria para o segundo turno. Como as eleições para o Senado se resolveriam no primeiro, José Aparecido de Oliveira e eu, sem discutir o assunto com os candidatos, concluímos ser absolutamente necessária a vitória de Alencar. Se perdêssemos a cadeira do Senado para os adversários, a posição do governador Eduardo Azeredo, que disputava a reeleição, estaria fortalecida - e comprometida a restauração política de Minas. Foi assim que Aparecido e eu nos escalamos, para trabalhar pela vitória de Alencar. Dediquei-me a ajudá-lo, na organização de seu discurso de campanha.

Teotônio sabia da gravidade da própria enfermidade e tinha a consciência da morte. Eu trabalhava na Folha de S. Paulo, e Octavio Frias Filho sugeriu-me que o entrevistasse, em 1982. Foi a entrevista mais demorada que fiz em minha vida. Teotônio falou-me, pela primeira vez, na casa de uma de suas filhas, em São Paulo. Quando, no dia seguinte, preparava para redigir o texto, recebi seu telefonema. Queria acrescentar alguma coisa esquecida. E assim ocorreu por quase duas semanas. Ele sempre interrompia o meu trabalho, lembrando-se de uma idéia, de um detalhe. E fazia questão de ir à minha casa, tornando-se, naqueles dias, íntimo da família. As nossas conversas ocupariam um livro de razoável tamanho. Tive, no texto final, que cortar trechos também importantes, para me cingir a duas páginas do jornal. Daí em diante, sempre que ele ia a São Paulo, nós nos encontrávamos, no Hotel Otton Pálace, onde se hospedava, ou em minha casa.

Nos dois homens públicos encontrei o mesmo confronto com a idéia da morte. Teotônio não a temia, embora amasse profundamente a vida. Ele fez da pressa (sabia que o tempo se encurtava) seu ânimo, e saiu pelo Brasil, clamando pela pátria que existia, mas era desdenhada pelas elites, às quais, pelo nascimento, pela carreira e pela fortuna, ele pertencia. Em nossa última conversa, pelo telefone, ele me disse: “o óleo da candeia já está acabando, só resta o molhado da mecha. Estamos indo, Mauro”. Em Teotônio, a busca do poder era responsabilidade legada pelos ancestrais. Vinha com a escritura da fazenda e as máquinas da usina, além, é claro, dos restos dos engenhos mais antigos. De uma família que, consciente de seu papel, endereçara Teotônio à política, e seu irmão, Dom Avelar, que foi Cardeal Primaz do Brasil, ao sacerdócio. José Alencar, nascido na Zona da Mata de Minas, enfrentou o trabalho muito cedo. Autodidata, chegou à vida pública depois de vitoriosa carreira empresarial. Faltava-lhe a realização política e a ela se dedicou já homem maduro. Aproveitou, com inteligência, a ajuda das circunstâncias, ao aceitar o convite de Lula, e dar ao eleitorado da classe média (mais do que aos eleitores das elites, conhecedores das coisas como elas são) o aval para a vitória do operário.

Mas, em ambos, na obstinação pelo aproveitamento das horas que se esvaíam, houve a mesma postura diante da morte: a de recebê-la, como dizia Manuel Bandeira, em seu poema conhecido, “lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar”.

A ENERGIA NUCLEAR E ANGRA DOS REIS

Divido meu espaço com o professor Ubirajara Brito, doutor em física nuclear pela Sorbonne, ex-membro da Comissão de Energia Nuclear da França e do Centro Nacional de Pesquisas do mesmo país. Tivemos demorada conversa sobre a situação dos reatores de Fukushima e o uso da energia termonuclear no Brasil. Brito é peremptório: o melhor, em nosso caso, é renunciar ao processo de produzir energia termoelétrica a partir da fissão nuclear. Bom seria que o mundo inteiro a isso renunciasse, e que todos os esforços da ciência e os recursos dos estados se aplicassem no emprego de outras fontes de energia. A energia solar é ilimitada, e já existem os meios tecnológicos de domá-la, embora ainda a custo alto. Há também o enorme potencial da biomassa e dos gases.

Segundo Brito, o Japão perdeu uma excelente oportunidade, quando do terremoto de julho de 2007, de se livrar da energia nuclear. Com isso se descobriu que a empresa privada Tokyo Electric Power (Tepco) operadora das usinas japonesas, havia erigido a sua maior central termoelétrica, a de Kashiwasaki, sobre o topo de uma falha geológica. O tremor abalou seus alicerces e um movimento de opinião pública levou a justiça a determinar seu fechamento. Ainda ontem, pela manhã, o site da Tepco trazia uma mensagem de seu presidente, Masataka Shimizu, editada antes do último terremoto, em que lamenta a decisão que a empresa foi obrigada a tomar, com o encerramento da que era a maior usina termonuclear do Japão. O presidente da empresa se queixa da queda dos lucros, e afirma sua confiança de que a Tepco continuará operando com segurança as suas usinas, e crescendo na ampliação da oferta de energia. Ao mesmo tempo, anuncia que pretende criar outras empresas no resto do mundo.

O Japão deveria, é a opinião do físico, ter aproveitado aquela oportunidade, a fim de buscar, com todos os seus recursos econômicos e vontade política do Estado, outras fontes de energia. Ao não fazê-lo, colocou seu povo na linha de grandes riscos. Seu território se encontra em um dos pontos mais perigosos da crosta terrestre, na junção de placas tectônicas que tendem a mover-se sempre e, provavelmente, com resultados cada vez mais graves.

Brito comentou a sugestão de Pingueli Rosa, de transferir as usinas de Angra para um ponto mais distante do litoral, a fim de prevenir acidentes nucleares que possam atingir a população. Segundo Brito, se as usinas fossem edificadas em vales estreitos, entre montanhas seguras – ou seja, sem a possibilidade de deslizamentos - os riscos seriam menores. Mesmo assim, a sua opinião é radical: o melhor é livrar-se da fissão nuclear.

Brito considera que as informações, até agora, são contraditórias, mas revelam uma falta de previsão, por parte da empresa operadora das usinas, para o caso de acidentes. Não houve cuidado em manter em situação segura geradores independentes de energia, para, na falta de eletricidade, refrigerar os reatores. De qualquer forma, de acordo com as informações da imprensa internacional, as autoridades japonesas haviam deixado a responsabilidade pela segurança das usinas, do meio ambiente e da população vizinha à própria empresa operadora, o que foi leviana e equivocada decisão.

É preciso, diz Brito, distinguir um reator funcionando normalmente de um reator com acidente. No seu funcionamento normal, no coração do reator verifica-se, de forma contínua, a fissão nuclear. O invólucro do coração do reator é resfriado por água, esta é aquecida, produz vapor, que vai mover as turbinas. Esta água sofre efeito da radiação emitida pela fissão do combustível; esta radiação, porém, não transforma a água nem o vapor em substâncias radioativas. São essencialmente raios gama, com energia até 2 milhões de eletros-volt (MEV), que atingem a água e o vapor, alcançam a blindagem do reator e não alcançam o exterior, porque são absorvidos pela blindagem, equivalente a um metro de chumbo ou aproximadamente três metros de concreto. Durante a fissão, porém, são produzidos praticamente todos os elementos existentes na natureza, com maior probabilidade para aqueles de massa próxima ao ferro, igual a 56, e outros próximos ao chumbo, de cerca de 200. Os elementos mais nocivos são o fósforo, que se fixa nos ossos; o enxofre, que atinge os testículos e os ovários; o cálcio que chega aos ossos, assim como o estrôncio; o iodo que prejudica a tireóide; o polônio que se fixa nos rins, e o rádio, que também atinge o esqueleto. Entre os produtos de fissão, o criptônio é dos mais perigosos porque, sendo um gás, difunde-se com facilidade.

Esses elementos, pondera Brito, só escapam para o exterior, quando a blindagem do reator sofre avarias com fissuras. A terceira possibilidade de acidente no reator é a de o calor subir muito, aumentando a pressão, devido à falha no resfriamento, e as varetas de urânio se fundirem. A temperatura subirá ao ponto de a blindagem não suportar a pressão. Rompe-se, então a blindagem, e os produtos da fissão se espalham no exterior.

Na primeira hipótese, havendo vazamento apenas de vapor, é preciso proteger-se contra os raios gama que passam pelas fissuras da blindagem. Neste caso a evacuação deve ser feita para além de 10 km, que é a distância a ser alcançada pela radiação, tendo em vista a densidade do ar, que é aproximadamente de 1 milésimo da densidade da água. Se houver saída dos produtos de fissão, isto é, elementos radioativos, a distância para evacuação é determinada em função das condições atmosféricas. Nunca deve ser menor de metros" st="on">100 quilômetros, e as pessoas devem ficar abrigadas, pois os ventos e a chuva poderão conduzir facilmente os radionuclídeos.

“Não sei – disse Brito, se, no caso em que a Tepco fosse empresa pública, a situação seria diferente. A crise econômica por que tem passado o Japão leva o público a se confundir com o privado, irresponsavelmente, em busca do crescimento econômico. A preocupação com o PIB e o medo da sua vizinha China estão levando os japoneses a esquecer Hiroshima e Nagasaki. Mas estou convencido de que o povo brasileiro pode ser bem feliz sem energia nuclear. Temos outras fontes, abundantes, sem esses riscos”.

Brito conclui que a dose limite de radiação que o corpo humano suporta durante uma semana é da ordem de 300 micro Curies (μC). Um C equivale a 3,7 x 1010 desintegrações por segundo. Para que se tenha uma idéia, 10 milicuries (mlC) de Estrôncio 90, ou 30 milicuries de Césio 137, são fatais para o ser humano.

A conclusão, clara, é a de que, mesmo com o preço de se deter o desenvolvimento econômico, dentro do modelo tecnológico que o mundo adotou há 160 anos, baseado na energia e na velocidade, é preciso pensar em nova ordem política, que não a do neoliberalismo, que, ao colocar o lucro como seu único fim, determina a construção de usinas termonucleares sobre falhas geológicas, entre elas as da ilha de Honshu – a maior do arquipélago japonês.